sábado, 3 de maio de 2014

O que dar aulas na Guatemala me ensinou

Texto escrito pela especialista em mídias sociais Adriana Rossatti, que passou um mês trabalhando como professora voluntária em uma escola na Guatemala. Lá ela aprendeu que o amor incondicional pode vir de onde menos esperamos.
Tirei um ano sabático, joguei a mochila nas costas e fui viajar. Conhecer vários lugares do mundo é algo fantástico, mas muito diferente de viajar de férias. Depois de um tempo, eu estava cansada, sentindo minha vida vazia. Queria algo que fizesse mais sentido. Foi quando me lembrei da GVI, uma organização inglesa sem fins lucrativos que mantém projetos ambientais, educacionais e de infraestrutura em vários continentes. A proposta é simples: você escolhe um dos projetos e se candidata a um período de voluntariado. Eu poderia unir minha vontade de conhecer lugares e culturas diferentes à satisfação de ter uma função social. Olhei o “cardápio” de opções e me apaixonei pelo projeto da Guatemala.
Na noite de Réveillon, eu e minha mochila embarcamos para uma temporada de um mês dando aulas para crianças em uma comunidade indígena maya. Sou de uma família de professoras. Cresci vendo as mulheres da minha família dentro de salas de aula e pensei que nada mais natural para me voluntariar do que dar aulas. Quando ouvi o comandante narrando os procedimentos de pouso, me espreguicei na poltrona e abri a janela ao meu lado. Vi uma paisagem verde, como uma selva, e um enorme vulcão soltando fumaça. Entrei em pânico!
Rapidamente abri o guia e resolvi aprender em 15 minutos tudo o que havia me recusado a ler sobre a Guatemala de antemão, porque queria a surpresa do inédito. A Guatemala é um país pobre, essencialmente agrário. A economia é baseada no cultivo de café, banana, cana-de-açúcar e milho. Cerca de 46% da população encontra-se abaixo da linha de pobreza. A maioria é formada por brancos e latinos, e 40% são indígenas, principalmente de ascendência maya. A diferença racial é uma questão crítica. Até os anos 1990 a população indígena era discriminada e perseguida. Desde então, o país luta por uma sociedade pacífica e democrática.
O Projeto Phoenix, no qual eu iria colaborar, fica em Itzapa, a cerca de 30 km de Antigua. O lugar fica em um vale, cercado por três grandes vulcões: Água, Fuego e Acatanango. Fuego era o vulcão que eu havia visto da janela do avião, e logo percebi que estava muito ativo. Como preparação, recebi ainda uma palestra com orientações de segurança na cidade, regras de comportamento no projeto, procedimentos para lidar com as crianças e até um treinamento para terremoto.
Itzapa é uma comunidade muito pobre, com péssimas condições de saneamento básico, casas de madeira, ruelas que sobem morros e homens armados nas portas do comércio local. O projeto ficava em um terreno de terra batida com dois barracões, um pequeno pátio e cinco divisões de compensado de madeira que faziam as vezes de salas de aula. Almoçávamos do outro lado da rua, na casa de dona Elena, líder comunitária do bairro. O banheiro era um buraco no chão de terra escondido atrás das salas. Não havia água encanada.
Na sala de aula, as turmas eram divididas por faixa etária e cada uma tinha o nome de um vulcão da região. O propósito do projeto era oferecer reforço escolar para que as crianças não repetissem de ano e fossem afastadas da escola pelas famílias, tendo um início precoce no mercado de trabalho. NaGuatemala não existe uma cultura de educação entre a comunidade maya e só agora as primeiras gerações estão alcançando a formação universitária. Nosso desafio era reforçar o conteúdo que elas tinham na escola pública e ajudar que essas crianças conseguissem engrossar a pequena fatia de indígenas diplomados. A mim foi designada a turma que estava sendo alfabetizada, a Fuego.
Assim como o vulcão, eles também estavam bastante ativos! Corriam, pulavam, arrastavam cadeiras, derrubavam os lápis. Eu tentava explicar os exercícios, enquanto um grupo lutava no fundo, outros fugiam da sala ou quebravam os gizes da lousa. Quando finalmente o turno terminou, eles saíram correndo pelo pequeno pátio de terra, me deixando encardida de poeira, saliva e urina. Voltei para a casa devastada, sentindo-me um fracasso. Não tinha conseguido decorar o nome de nenhum dos meus alunos. À noite liguei para minha irmã, contei o trauma do primeiro dia, ela riu e me disse: “Eles não foram normalizados”. O que, em jargão pedagógico, significa que aquelas crianças não tinham assimilado regras de comportamento dentro da sala de aula.
Criei um plano de ataque. Pesquisei na internet, sentei com outros voluntários, li os livros pedagógicos à nossa disposição. Estava decidida a ter resultado com aquelas crianças. A primeira coisa que descobri foi que elas são apenas crianças, e isso significa que estão dispostas a aprender. Criei, então, um jogo com regras, pequenos rituais que me ajudassem a criar certa disciplina. Funcionou mais rápido do que eu imaginava. Ao fim da primeira semana, as crianças estavam sentadas corretamente, faziam fila quando tocava o sino e, principalmente, prestavam atenção enquanto eu falava. Eu sabia o nome de cada um dos meus 36 alunos, e todos tinham os olhos brilhando quando me olhavam.
Depois do choque do início, ganhei tempo para entender a personalidade de cada um. Danilo era carinhoso, nunca se cansava de me dar beijos. Irma, embora fosse terrível e agredisse os meninos, era carinhosa quando não tinha ninguém olhando. Osman tinha sempre o nariz sujo e me enchia de presentes como flores, bilhetes e pedaços de brinquedos quebrados. Brayon, pequenino e frágil, dormia no meu colo durante o recreio. Oscar, um líder nato, faltava muitas vezes para trabalhar nos mercados com o pai. Carlos nunca abria a boca e era quase cego dos dois olhos.
Graça e desespero
O que vivi nas semanas seguintes foi um misto de graça e desespero. Eu mergulhei na minha missão de ensinar aquelas crianças. Nós ríamos, brincávamos. As crianças pulavam na minha cabeça no recreio. Algumas vezes houve choro, eu precisei ser dura. Sofri quando eles adoeciam, me senti impotente quando eles faltavam porque precisavam trabalhar. Recebi as manifestações mais sinceras de gratidão de minha vida. Cada vez que ouvia de um aluno “És buena, Seño! És buena!”, era como se meu coração explodisse no peito e abraçasse todas aquelas crianças, suas famílias, meus colegas, o país inteiro. Engraçado que eu tenha que atravessar o mundo e precisar ouvir de uma criança de 6 anos que existe algo de bom em mim. Mais que isso, encontrei um amor incrível, absoluto, incondicional, como nunca tinha sentido na vida. Sempre achei que amor era uma coisa que precisava de tempo, de dedicação; e, de repente, 36 crianças chegaram e se instalaram na minha vida e eu as amava de uma maneira tão irracional que me assustava. Escrevi um e-mail para minha irmã, perguntando: “É assim mesmo que é ser professor? Você ama seus alunos desse jeito?” Ela riu e disse um “é” conformado.
Quando um voluntário terminava seu período havia “Las Despedidas”. As crianças faziam festa, preparavam cartões, colocavam uma cadeira na porta do projeto e vinham agradecer ao voluntário. Na última semana eu havia feito de tudo para evitar pensar naquela cadeira. Na sexta-feira, Dona Elena me convidou a vestir um traje típico maya. Uma honra que não era normalmente oferecida aos voluntários. Cheguei ao pátio de terra batida, vestida de princesa maya. As crianças pararam admiradas. Então eu me sentei na cadeira na porta do projeto e, uma por uma, cada criança me deu um último abraço. Meus alunos de Fuego me abraçaram com seus bracinhos magros e choraram nos meus ombros. Me entregaram cartões que eles coloriram. Diziam que me amavam e que nunca me esqueceriam. No fim do dia o pátio ficou vazio, seco de terra vermelha, e eu sabia que eles iriam me esquecer. Era assim que tinha de ser.
Vi na Revista Vida Simples.

Nenhum comentário:

Postar um comentário