domingo, 29 de junho de 2014

Menino Brinca de Boneca e Menina Brinca de Carrinho


Recentemente a rede de brinquedos européia  Top-Toy divulgou em seu catálogo promocional fotos em que meninos e meninas aparecem brincando com as mesmas coisas. Além de eliminar a distinção de brinquedos de sua publicidade, a empresa retirou também de suas lojas físicas, a separação de sessões masculinas e femininas. Em nome da defesa dos valores morais e da família, dezenas de pais se revoltaram com a atitude da Top-Toy, classificando-a como uma tentativa de engenharia social proveniente da ditadura da homofobia. Um dos argumentos defendidos por esse grupo é a negação da influência dos padrões sociais nas condutas classificadas como femininas ou masculinas. Segundo eles, não é a cultura que determina as brincadeiras de meninos e meninas, mas a diferença natural entre os sexos. Inverter os papéis, nesse caso, resultaria fatalmente numa sociedade homosexual.

Eu não pretendo aqui discutir o preconceito relacionado às diferentes opções sexuais - se é que podemos chamá-las de opções - nem suas consequências para a vida social. Quero apenas explicar porque acho que uma coisa não tem nada a ver com a outra. E para isso, vou retomar aquela crise existencial milenar da humaninade: a relação instinto x cultura. Essa relação é o argumento que nós, seres humanos, temos usado há muitos anos para, do alto do nosso pedestal, definirmos a nós mesmo como a mais complexa espécie já conhecida. Mas por mais magníficos que sejamos, e por mais avançados que estejamos em nossa ciência, ainda não nos tornamos capazes de determinar muito bem o quanto de nós é homos e o quanto de nós é sapiens. A biologia nos diz que machos e fêmeas são naturalmente diferentes, não só nos aspectos físicos, mas também nos psicológicos e emocionais. Mas a genética nos diz também que cada macho é diferente de outro macho, e que cada fêmea é diferente de outra fêmea. Como então determinar com CERTEZA o que é de homem e o que é de mulher? Como saber o que de fato é inerente a cada gênero se pessoas do mesmo sexo podem apresentar características e comportamentos completamente distintos?

As cores são um bom exemplo de como os padrões sociais determinam algumas de nossas condutas. Por ser uma cor mais forte, o rosa Pink era associado ao sexo masculino até 1920, enquanto o azul, mais delicado, era visto como uma cor feminina. De repente, para agitar as vendas, o mercado de roupas passou a sugerir azul para eles e rosa para elas. E passamos a aceitar com tanta verdade as novas regras impostas pelo marketing, que há quem diga hoje que vestir meninos de rosa poderá transforma-los em homossexuais. Será que com os brinquedos é assim também? Eles seriam, como as cores, determinados apenas pela cultura?                  
Alguns psicólogos afirmam que não. Meninos, segundo eles, são naturalmente mais agressivos e competitivos, preferindo brincadeiras de luta ou jogos esportivos. Menos ativas, as meninas prefeririam brincar com bonecas para alimentar o seu instinto maternal. Mas sabemos que embora existam determinados padrões de comportamento, cada ser é único com vontades e características próprias. E eu não consigo acreditar que a sexualidade de um adulto possa ser mais influenciada pela liberdade concedida a ele, enquanto criança, na escolha de seus brinquedos do que pela sua repressão. Não se trata de OBRIGAR crianças a brincar com coisas diferentes, mas de RESPEITAR as suas preferências sem transferir-lhes os nossos preconceitos e tabus.
Estudiosos da psicologia infantil nos mostraram ao longo do tempo a importância do brincar para o desenvolvimento da criança. É durante esse ato que ela constrói e desconstrói hipóteses e desenvolve a função simbólica. O menino e a menina podem assimilar, a partir do mesmo objeto, sentidos diferentes. Isso não significa que um menino que brinca de boneca vai ser gay. Também não significa que ele vai ser bom pai. Significa apenas que ele está construindo significados naquele momento que são importantes àquela fase específica, e quanto mais liberdade ele tiver nesse processo, mais pleno será o seu desenvolvimento.                                                            
Não estou aqui levantando a bandeira da igualdade entre os sexos. Confesso que defendia com mais vigor essa causa antes da Maya chegar na minha vida. As transformações por que passaram o meu corpo, o milagre acontecido dentro de mim, e todas as loucuras da maternidade me inspiraram uma profunda admiração pela figura feminina. Fui percebendo aos poucos que a nossa força vem de um lugar diferente e o meu lado queimador de soutian foi obrigado a abaixar um pouco a crista. Continuo acreditando que devemos lutar por direitos iguais, mas não para sermos iguais. Exigir isso é dizer indiretamente que ser homem é melhor. É o que nos impõe essa sociedade machista, em que o bom é ser frio, racional, duro e viril. Associadas à fraqueza, a sensibilidade e a emotividade femininas parecem não caber mesmo nesse mundo competitivo. Que não caibam então. Que mude o mundo. Nao somos nós que temos que mudar. A nossa beleza é justamente essa. Está na suavidade do movimento, na flexibilidade das curvas - que não precisam ser transformadas em músculos rígidos - e na instabilidade inerente aos seres cíclicos que somos. 
Somos dois mundos diferentes sim. Talvez tão distantes quanto Marte e Vênus. Mas essa diferença não e tão simples e palpável como possa parecer. A sexualidade humana é um assunto profundo que envolve autoconhecimento e conexão com o corpo e com os instintos. Como pais, devemos nos preparar para orientar os nossos pequenos sobre essas questões quando deles partirem as primeiras perguntas. Mas isso pode dar trabalho demais. E trabalho é o que muita gente não quer. Parece muito mais fácil dar uma boneca pra menina, um carrinho pro menino, e torcer para que eles não misturem as coisas. Parece mais fácil. Mas considerando o nosso contexto atual, será que isso basta?

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